A relevância da invasão turca

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Abordando as duras questões sobre imperialismo e solidariedade

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No panorama a seguir, abordamos algumas perguntas comuns sobre por que é importante se opor à invasão turca de Rojava e sugerimos uma análise do que isso significa para a política mundial.

Para aqueles que não seguiram os meandros da situação na Síria, Turquia e em todo o Curdistão, pode ser difícil entender o que está em jogo aqui. Temos a sorte de que alguns de nós passamos algum tempo em Rojava e nas regiões vizinhas. Estamos escrevendo com relativo conforto, longe dos massacres que os militares turcos estão promovendo, mas com nossos entes queridos em Rojava no centro de nossos pensamentos – junto com todas as pessoas que sofreram gravemente durante a guerra civil na Síria.

A guerra não envolve apenas bombas e balas. É também uma luta de narrativas envolvendo propaganda e controle de informações. O governo turco tem censurado reportagens, cortando o acesso à Internet e forçando as empresas de mídia social a silenciar suas vítimas; conseguiu até enganar alguns esquerdistas notáveis para legitimar sua agenda. Tudo o que temos para combater isso são nossas próprias experiências vividas, nossas conexões internacionais com outras pessoas comuns como nós e projetos de voluntariado como esta nossa plataforma de publicação que rejeita todas as agendas estatais e corporativas.

O momento da invasão da Turquia pode ter sido determinado em parte pela resposta de Donald Trump ao seu recém aberto inquérito de impeachment. Os presidentes dos EUA têm uma longa tradição de iniciar intervenções militares para distrair a atenção de questões domésticas. A versão Trump desta tradição é intencionalmente reacender uma guerra civil fingindo “acabar com ela”. Em todo o mundo, a extrema direita parece estar tentando cooptar a retórica “anti-guerra” da mesma maneira que se apropriou slogans “anti-globalização”, enquanto na verdade intensifica a agressão militar e o capitalismo. É o mesmo “isolacionismo” da direita mundial que vimos quando Hitler anexava territórios na Europa. Parece que progredimos muito rapidamente de repetir o início da década de 1930 para reencenar no final da década de 1930.

A traição do povo de Rojava é tão chocante que humilhou até muitos dos políticos americanos notavelmente sem vergonha. A menos que façamos uma pressão significativa por meio de ação direta disruptiva, prevemos que o governo dos EUA vá esperar até que a limpeza étnica de Rojava seja um fato consumado antes de fazer qualquer coisa em resposta. Aconteça o que acontecer, a invasão turca reacendeu uma guerra civil que estava chegando ao fim, garantindo muitos mais anos de derramamento de sangue por todo o Oriente Médio. Nenhum ser humano com o mínimo de empatia poderia apoiar isso.

Grafite em frente ao tribunal em Nova Orleans, Louisiana, em 12 de outubro de 2019.

“Anti-imperialistas não querem que os EUA se retirem da Síria?”

Apoiar a aparente retirada de tropas de Trump da Síria em nome do anti-imperialismo é tolice, se não for totalmente falso.

O envolvimento dos EUA na Síria parece muito diferente do que no Iraque e no Afeganistão. Mais de 100.000 soldados dos EUA ocuparam o Iraque por mais de meia década. Por outro lado, no máximo, houve apenas duas mil tropas americanas na Síria – menos de 2% do número enviado ao Iraque. Os soldados americanos na Síria desempenham um papel consultivo, realizando ataques aéreos, mas nunca assumindo o dever de combate na linha de frente.

Mesmo após o anúncio de Trump de que ele está retirando as forças armadas dos EUA da Síria, 1000 soldados americanos permanecerão no país. Abrir o caminho para a invasão turca aparentemente exigia mover apenas 50 militares das forças especiais – era apenas uma questão de afastá-los do caminho das bombas turcas. De fato, as forças armadas dos EUA enviaram mais outras 14.000 tropas para o Oriente Médio desde maio, reforçando especificamente os destacamentos na Arábia Saudita. Não estamos vendo uma retirada de tropas – estamos vendo uma mudança de política no sentido de permitir o extermínio de projetos comparativamente igualitários, ao mesmo tempo em que apoiamos regimes mais autoritários com o aumento de tropas.

Portanto, os anti-imperialistas que veem isso como uma vitória contra o militarismo dos EUA são tolos, pura e simplesmente. Trump não fez nada para reduzir o império dos EUA. Ele simplesmente deu abertura para Erdoğan construir o império turco, para realizar uma limpeza étnica enquanto as tropas americanas observam. Isso não tem precedentes na história do imperialismo dos EUA.

Em outra ocasião, valeria a pena considerar a palavra “anti-imperialista” com mais detalhes. Muitas vezes vemos essa palavra empregada pelos partidários de algum império rival – normalmente Rússia ou China, mas não só eles. Podemos precisar usar uma palavra diferente para aqueles que são consistentes na oposição a todos os impérios, intervenções estatais e formas de poder hierárquico. Anti-colonial, por exemplo. Ou, para ser mais claro ainda, anarquista.

Durante anos, ouvimos estadistas de vários cantos da esquerda acusando anarquistas de serem ferramentas para o neoliberalismo, devido ao fato de nos opormos aos governos russo, chinês e nicaraguense, bem como ao governo dos Estados Unidos. Trata-se de insultos de má-fé feito por pessoas que podem ter uma culpa na consciência por seu próprio apoio incondicional a governos autoritários – da mesma forma que apoiadores de Trump gostam de alegar que George Soros, um bilionário judeu, está por trás da atividade anti-Trump enquanto eles bajulam a um bilionário de graça. É absurdo acusar os anarquistas de serem ferramentas do neoliberalismo por identificar as maneiras pelas quais a China e a Rússia participam do neoliberalismo; é duplamente absurdo acusar os anarquistas de serem ferramentas do imperialismo por criticar os EUA por darem permissão a Erdoğan para invadir Rojava.

O fato de que algumas pessoas que se opõem ao intervencionismo americano possam ser levadas a virar torcida quando o governo dos EUA dá a outro governo autoritário a luz verde para matar milhares de pessoas ilustra o que acontece quando alguém oportunamente baseia sua política em fatores incidentais, como a oposição a um império predominante em particular, e não em princípios éticos, como oposição a todas as formas de dominação.

“O pessoal exagerou com a saída de Mattis, dizendo que ninguém será deixado para “restringir os impulsos de Trump”. Como o impulso de tirar as tropas americanas de guerras sem fim? Esse é um impulso que eu apoio!” - Ingenuidade comovente da suposta ativista anti-guerra Medea Benjamin – um tweet agora encharcado de sangue.

“Os curdos são apenas cúmplices para os EUA?”

O fato de o governo dos EUA ter traído tão prontamente o povo de Rojava acaba com a alegação de que eles são apenas peões em uma estratégia dos EUA. Os militantes de Rojava seguiam a mesma agenda de autodeterminação multiétnica por muitos anos antes de os EUA acharem conveniente apoiar sua luta contra o Estado Islâmico.

Deveríamos culpar grupos como o Partido da União Democrática (PYD) em Rojava pela coordenação com os EUA? Anarquistas em Rojava argumentaram que as pessoas de lá foram forçadas a escolher entre serem massacradas pelo Estado Islâmico e trabalhar com o governo dos EUA. Considerando que eles foram quase conquistados pelo Estado Islâmico em 2014, é difícil argumentar sobre isso.

Quando analisamos o problema em uma escala individual, hesitamos em culpar uma mulher que, não estando conectada a uma comunidade solidária, liga para a polícia quando ela é atacada. É improvável que a polícia a ajude, é claro – e confiar na polícia apenas reproduz os fatores estruturais que causam pobreza e violência. Mas, se queremos que as pessoas adotem nossa total oposição ao policiamento, precisamos oferecer a elas melhores opções.

Da mesma forma, se quisermos viver em um mundo em que pessoas em lugares como Rojava não receberão o apoio do governo dos EUA, teremos que oferecer alternativas credíveis por meio de movimentos sociais e campanhas de solidariedade internacional. Os anarquistas vêm procurando maneiras de fazer isso há anos. No momento, isso significa fazer todo o possível para impor consequências à Turquia e aos EUA por essa invasão.

“Os curdos apoiam o sionismo e a islamofobia?”

Uma das principais características do experimento social que surgiu em Rojava nos últimos anos é que, em contraste com as várias formas de nacionalismo étnico e religioso tão prevalecentes na região, ele é multiétnico e inclusivo. Uma parte significativa das Forças Democráticas da Síria (SDF) em Rojava é muçulmana. Pode ser atraente para alguns islamofóbicos dos EUA apoiarem a resistência curda ao Estado Islâmico enquanto os EUA a apoiam, mas não devemos culpar o povo de Rojava por isso.

O governo regional do Barzani no Curdistão (KRG) no Iraque mantém historicamente boas relações com a Turquia e Israel, mas diferentes partidos curdos têm agendas muito diferentes. Há muitas críticas justas a serem feitas ao PYD, SDF e outras estruturas em Rojava, mas é forçar a barra acusá-las de serem sionistas. Pelo contrário, em geral, eles merecem crédito por não serem pró-sionistas nem anti-judeus em uma região onde tantos atores são um ou outro.

Embora existam elementos nacionalistas em alguns dos movimentos e estruturas curdos de Rojava, eles não são tão etnocêntricos quanto muitas das outras correntes nacionalistas da região. De qualquer forma, não precisamos endossá-las para snose opor à invasão turca.

“Os curdos traíram a Revolução Síria?”

Como anarquistas, consideramos que os apoiadores de Assad estão num nível abaixo do desprezível. Aqueles que explicam a revolta original contra o regime de Assad como uma operação da CIA são teóricos da conspiração que negam a agência dos participantes de base. Abençoar a tirania com o nome “socialismo” e justificar a violência do Estado com base na soberania legítima é assumir uma postura de lambe-botas. A revolta na Síria, originalmente, foi uma resposta à opressão estatal, assim como as revoltas na Tunísia e no Egito. Afirmamos o direito dos oprimidos de se revoltarem mesmo quando parece não haver esperança de sucesso. Se não fosse por essa coragem dos povos, a humanidade ainda estaria vivendo sob monarcas hereditários. Por falta de mais coragem, nossas sociedades estão mergulhando fundo na tirania mais uma vez.

Guiados pelas experiências daqueles que participaram do levante original na Síria, podemos aprender muito sobre os perigos do militarismo na luta revolucionária. Depois que o conflito com o governo de Assad passou de greves e subversão para violência militarizada, aqueles que eram apoiados por atores estatais ou institucionais conseguiram um lugar central como protagonistas; poder coletado nas mãos de islamitas e outros reacionários. Como os anarquistas insurrecionários italianos argumentaram, “a força da insurreição é social, não militar”. O levante não se espalhou rápido o suficiente para se tornar uma revolução. Em vez disso, transformou-se em uma terrível guerra civil, encerrando a chamada “Primavera Árabe” e com ela a onda mundial de revoltas.

O fato de o levante na Síria ter terminado em uma horrível guerra civil não é culpa daqueles que arriscaram tudo para resistir ao regime de Assad. Mais uma vez, mostra que não fomos corajosos ou organizados o suficiente para apoiá-los adequadamente. O resultado infeliz da revolta síria ilustra as consequências desastrosas de contar com governos e estados como os EUA para apoiar aqueles que se defendem contra opressores e agressores. A atual invasão turca confirma essa mesma coisa.

Algumas pessoas fora da Síria também culpam os curdos por esse fracasso. Parece hipócrita quando alguém que não foi à Síria participar da luta acusa os curdos de terem ficado de fora da primeira fase dos levantes. As únicas pessoas de quem essa acusação carrega algum peso são as que participaram da primeira fase do levante sírio.

Somos solidários com essa frustração que ouvimos de refugiados sírios. Aprendemos muito com os sírios que assumiram riscos corajosos na revolução e foram obrigados a fugir pela rota dos Balcãs, ficando presos em lugares como Grécia e Eslovênia. Muitos refugiados sírios contribuíram admiravelmente para as lutas sociais nesses países – apesar de não estarem lá por opção, apesar da xenofobia e opressão diárias que enfrentaram. Muitos deles foram encarcerados ou deportados por regimes racistas nas fronteiras.

De onde estamos situados, não é fácil julgar as decisões dos membros de uma minoria oprimida na Síria, longe da maior parte dos combates no início da revolta, que historicamente tem sido traída repetidamente por outros grupos na região. Talvez, se os curdos e outros em Rojava arriscassem imediatamente tudo na luta contra Assad, poderia ter sido diferente. Se isso for verdade, a lição desta tragédia é que é crucial construir confiança e solidariedade através de linhas étnicas e religiosas antes que a revolta comece. Esta é mais uma razão para nos preocuparmos com o destino dos vários grupos étnicos no lado mais fraco da invasão turca no momento.

Infelizmente, é possível que, mesmo que a revolta tivesse derrubado Assad, a Síria estaria um pouco melhor hoje – veja o Egito, a Líbia e a Tunísia. Em vez de simplesmente substituir um governo por outro, a coisa mais importante que podemos esperar realizar na luta é abrir espaços autônomos de autodeterminação e solidariedade nos quais as pessoas podem explorar diferentes maneiras de se relacionar. Até certo ponto, o experimento em Rojava conseguiu isso.

Mas mesmo se as pessoas em Rojava hoje fossem de alguma forma responsáveis pelo fracasso da revolta síria, elas mereceriam ser massacradas por isso?

Não, eles não mereceriam.

A invasão apenas começou.

“Mas vi em algum lugar na Internet que ‘os curdos’ estão envolvidos na limpeza étnica? Eles não estão mantendo pessoas em campos de detenção?”

Onde quer que haja prisões – em qualquer lugar que exista um sistema penal – há opressão. Nós somos abolicionistas penais; não apoiamos qualquer tipo de encarceramento. Ao mesmo tempo, existem milhares de assassinos em massa entre os cativos do ISIS que certamente estão determinados a retomar a matança assim que estiverem livres. Isso representa uma situação difícil para todos que esperam ver reconciliação multiétnica e coexistência pacífica na região.

De qualquer forma, havia prisões no Iraque em 2003 – e isso não nos impediu de protestar para que Bush não invadisse o Iraque. Não precisamos endossar tudo o que o SDF ou a PYD está fazendo para se opor à agressão militar da Turquia – um estado mais prisional.

Da mesma forma, vimos relatos de violência em Rojava sob a atual “auto-administração”. Não consideramos Rojava uma utopia; como anarquistas, também temos críticas a fazer sobre as estruturas políticas de lá. Mas temos que ver as coisas na proporção adequada. Em relação à brutalidade praticada pela maioria dos outros atores da região – especialmente ISIS, Turquia e Assad – o SDF e grupos relacionados em Rojava foram, comparativamente, muito restritos.

A detenção de combatentes do ISIS junto com mulheres e crianças do Estado Islâmico não é a pior coisa que poderia ter acontecido. Pelo que alguns de nós ouvimos em Rojava durante a fase final da luta contra o território do Estado Islâmico, as únicas pessoas em todo o mundo que queriam tirar prisioneiros do ISIS das mãos do SDF eram milícias xiitas iraquianas. Por volta da época da tomada de Baghouz, eles estavam oferecendo dinheiro e armas ao SDF em troca de combatentes do ISIS iraquianos capturados na esperança de se vingar violentamente deles. Para seu crédito, a SDF se recusou a entregar os cativos.

Isso não é tentar legitimar a prisão, mas enfatizar a intensidade de conflitos e ódio na Síria e no Iraque depois de tanta guerra. Muitos desses prisioneiros provavelmente teriam sido executados em pouco tempo pelos governos sírios ou iraquianos, ou torturados lenta e metodicamente pelas milícias xiitas, em vez de receberem comida e cuidados médicos como estão em Rojava. De fato, alguns na região criticaram o SDF por serem muito brandos com esses prisioneiros. Se a Turquia ou seus representantes mercenários sírios permitirem aos detidos do ISIS escapar e retomar suas atividades anteriores, todos os que argumentaram a favor da execução dos cativos se sentirão vingados.

Para os abolicionistas penais e para qualquer pessoa que queira ver a paz no Oriente Médio, a principal prioridade agora é interromper a invasão turca. Não precisamos legitimar nenhuma política SDF específica para fazer isso.

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“Mas a Turquia diz que as organizações em Rojava são terroristas e afirmam ser ameaçadas por elas.”

É absurdo argumentar que pessoas comuns na Turquia foram realmente ameaçadas pelo experimento em Rojava. As forças armadas dos EUA já haviam concordado em supervisionar patrulhas por toda a fronteira – e muitas das pessoas do outro lado da fronteira são curdas e têm muito em comum com as pessoas em Rojava. Um Rojava livre não ameaça o povo turco; ameaça o regime de Erdoğan e a opressão que o povo curdo enfrenta na Turquia. É uma guerra etno-nacionalista, simplesmente.

Existe uma luta violenta na Turquia entre o estado turco e movimentos curdos e grupos armados há décadas. Erdoğan acredita que ele pode manter a supremacia pela força de armas, tanto na Turquia quanto contra os países vizinhos, continuando um legado que inclui o genocídio sistemático de mais de um milhão de armênios há exatamente um século.

Certamente, agora que a Turquia reacendeu a guerra civil síria, muito mais civis turcos morrerão nessa guerra do que morreriam de outra forma. Na melhor hipótese, isso esclarecerá para algumas pessoas na Turquia que um estado militarizado não as torna mais seguras, mas as coloca em perigo, assim como as do outro lado das bombas e balas.

“Mas a Turquia diz que precisa capturar Rojava para reinstalar refugiados sírios no país.”

Não está claro exatamente quais são os planos da Turquia para a região, nem a quem eles esperam estabelecer lá; a maioria dos refugiados sírios na Turquia não é de Rojava. Principalmente, a Turquia gostaria de afastar o povo curdo desafiando de suas fronteiras, a fim de sufocar os movimentos de independência dos curdos.

De qualquer forma, a Turquia usar a força militar para matar ou deslocar milhões de pessoas e substituí-las por uma população completamente diferente é a definição exata de limpeza étnica. O fato de anunciar antecipadamente que pretende cometer crimes de guerra é chocante.

“A oposição à invasão turca legitima os militares dos EUA?”

Como anarquistas, não acreditamos que os militares dos EUA possam fazer qualquer bem no mundo. Mas ninguém tem que legitimar o exército dos EUA para se opor a uma invasão turca. Não estamos pedindo que os militares dos EUA resolvam a situação; estamos chamando as partes responsáveis ​​por essa tragédia – os governos dos EUA e da Turquia e todas as empresas que ajudam a definir suas agendas – e pressionando-as a pôr um fim nela.

Quando Hitler tomou a Tchecoslováquia em 1938, quando Bush invadiu o Iraque em 2003, ninguém teve que afirmar ou legitimar nenhum estado, governo ou exército para se opor a essas invasões. Em vez disso, ao tornar o mais inconveniente possível para qualquer um ficar de pé enquanto essas tragédias ocorrem, assumimos nossa oposição de princípios contra injustiça.

Da mesma forma, a traição dos curdos deve deixar claro para quem ainda acredita no governo dos EUA – ou em qualquer governo – que só teremos a paz no mundo se pudermos criá-la com nossos próprios esforços, fazendo tudo o que formos capazes. É possível resolver conflitos horizontalmente enquanto nos defendemos das estruturas verticais de poder daqueles que aspiram a governar.


Falácias como “Se você é contra a invasão turca, deve ser a favor do imperialismo dos EUA” ilustram as armadilhas do pensamento binário. É mais fácil entender o que está em jogo nessa situação se reconhecermos que há pelo menos três lados básicos nos conflitos globais de hoje, cada um representando uma visão diferente do futuro:

  • Neoliberais de todos os tipos, de Lindsay Graham e Hillary Clinton a partidos supostamente esquerdistas como o SYRIZA na Grécia e o Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil. Embora discordem dos detalhes, compartilham um objetivo comum de usar a governança estatal global em rede para estabilizar o mundo em prol do Capitalismo.

  • Nacionalistas como Trump, Erdogan e ISIS, que deixaram sua cumplicidade clara o suficiente no decorrer deste assunto tratado aqui. Essa categoria também inclui Assad, Putin e outros demagogos que – como os neoliberais – costumam estar em desacordo uns com os outros, mas todos buscam a mesma visão de um mundo pós-neoliberal de etnoestados concorrentes.

  • Movimentos sociais de libertação que buscam promover a autodeterminação pluralista e igualitária, com base na autonomia e na solidariedade. Muito do que vimos em Rojava se encaixa nessa categoria, mesmo que grande parte também tenha um caráter nacionalista.

Quando nacionalistas colaboram contra um experimento social como o de Rojava, pedir resistência não deve significar endossar os neoliberais que anteriormente administravam a paz e a guerra. Pelo contrário, temos que construir nossos movimentos sociais, rompendo com as agendas nacionalistas/militaristas e neoliberaisreformistas. Caso contrário, seremos para sempre instrumentalizados de um lado ou de outro, seja por manipulação direta ou por medo de o outro grupo alcançar a supremacia.

“Como podemos ter esperança de parar a Turquia, um das forças militares mais poderosos do mundo?”

Podemos até não conseguir forçar os governos dos EUA e da Turquia a interromperem a invasão em Rojava. Mas, mesmo se não o fizermos, há coisas importantes que podemos realizar adotando ações e oportunidades valiosas que perderemos se não o fizermos.

A invasão de Rojava está ocorrendo em um cenário global de intensificação do nacionalismo, conflitos e autoritarismo. Temos que entender isso como uma única batalha em um conflito muito maior. Situando-o no contexto das maiores lutas mundiais que estão ocorrendo agora, podemos identificar vários objetivos que estão absolutamente ao nosso alcance:

  • Podemos mostrar a cumplicidade entre nacionalistas como Trump e Erdogan e ISIS e delegitizá-los aos olhos do público, mostrando como são conectados um ao outro.

  • Podemos avançar em uma posição anti-estatal como a única forma confiável de solidariedade com os povos na mira da opressão estatal e do colonialismo – não apenas o imperialismo dos EUA, mas também o imperialismo turco, russo e chinês, entre outros.

  • Podemos legitimar e popularizar formas de ação direta como a única maneira de pressionar efetivamente as autoridades. Quando a política eleitoral falha em oferecer progresso significativo em direção à mudança social, temos que acostumar as pessoas a outras abordagens.

Se o ISIS puder reerguer sua atividade novamente – e não houver paz ou perspectiva positiva no Oriente Médio por mais uma década – queremos que todos no mundo saibam de quem é a culpa e que fizemos todo o possível para detê-la.

As apostas são altas, mas se lutarmos muito, podemos sair desse pesadelo um passo mais perto de um mundo sem guerras. Ou, na sua falta, um mundo em que pelo menos estamos lutando em conflitos de nossa própria escolha, e não tragédias sem sentido como essa.

Ação em solidariedade a Rojava em Flensburg, Alemanha, contra a invasão turca.